Pesquisas coordenadas pela Universidade de Campinas (Unicamp), realizadas junto aos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do Estado de São Paulo, mostram que houve um avanço na reforma psiquiátrica brasileira, mas por outro lado, a hipermedicação dos pacientes, notadamente das classes menos favorecidas.
O estudo aponta que o uso crescente destes medicamentos está associado a fatores socioeconômicos, com prevalência de medicação associada aos indivíduos de maior vulnerabilidade social, baixa escolaridade e menor renda per capita. Em Campinas (SP), no primeiro semestre de 2010, apenas na rede pública de farmácias, 65.778 pessoas receberam prescrição de psicofármacos, o que equivale a 6,5% dos habitantes da cidade. Segundo os autores do estudo, igual processo vem sendo observado na atenção primária europeia, com taxas de prescrição de psicofármacos que chegam a 8% da população.
Além da crescente medicação, o estudo revela também a medicalização da população - fenômeno de transformação de situações corriqueiras em objeto de tratamento da medicina. Na opinião dos pesquisadores, em ambas as situações, um dos efeitos produzidos é a redução das experiências singulares das pessoas a meros fenômenos bioquímicos. " Nas entrevistas, os trabalhadores da saúde alegam que, vendo pessoas em situação tão difícil e desfavorável, decidem dar o medicamento para ' acalmá-las' . É algo sobre o qual eles devem refletir: na verdade, se está medicalizando um problema que faz parte da vida e que não é doença; se as condições do seu bairro estão péssimas, a pessoa deve primeiro se indignar, pois vivendo sob a ação de calmantes, nada vai fazer" , observa a professora Rosana Teresa Onocko-Campos, do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, que atuou na coordenação da pesquisa.
Para ela, a centralização da prescrição na figura do médico é um aspecto ainda não reformado da reforma, assim como o desconhecimento que também os trabalhadores da saúde demonstram sobre medicação. " Os profissionais vivem cotovelo a cotovelo com o médico e os pacientes graves, às vezes durante anos, mas conhecem quase tão pouco quanto os usuários. É um paradoxo. Pressupõe-se que eles tenham interesse em aprender, pelo menos, qual é o efeito do remédio ou por que ele é combinado com um e não com outro."
Um dos desdobramentos interessantes da pesquisa, conforme Rosana Onocko-Campos, é que os pacientes começaram a se responsabilizar mais pelo próprio tratamento. " Os usuários são os únicos que podem falar da experiência do adoecimento, de como é estar com psicose ou depressão. No diabético, o médico mede a glicose e verifica se é preciso reduzir ou aumentar a dose. Mas se a pessoa sofre de transtorno do humor, como saber se a dosagem está boa, a não ser confiando no que ela diz? A valorização da palavra do outro é condição para a qualidade do tratamento. O médico que não faz isso, não é bom clínico." (Veja mais detalhes da pesquisa.)
Com informações da Unicamp